terça-feira, 14 de outubro de 2008

Consolo

Vejo o rosto todo arquear, sucumbir, deformar-se aos poucos. Vagarosamente. É o orgulho, a vergonha, a covardia que o mantém firme ou parcialmente firme. E então o rosto se movimenta com a expressão. O pescoço se move, usualmente na diagonal e sempre para baixo. Esconde a parte que sente e evita os soluços. Resiste por mais algum tempo.

Com o indicador fixado na ponta do queixo ergo a face que tem vergonha e observo que suas narinas parecem lutar contra a expressão que este rosto quer expor. Deixo-o, o rosto, seguir à vontade. Suas sobrancelhas encolhem e, assim, enrugam toda a sua testa. Seus olhos parecem esmagados pelas pálpebras que se contraem. Se avermelham aos poucos. Agora já parecem mortos ali dentro, afogados em toda aquela água, deliberadamente infelizes. Vejo então a face feia, a face verdadeira. Vejo então o que a tristeza pode fazer com a face.

Então abraço-lhe, dou-lhe todo o consolo possível, digo-lhe tudo o que sinto, faço o possível para dar-lhe consolo. Até ver que as lágrimas secaram ao sopro de minhas palavras, a água que afogava os olhos limpou o vermelho, vazou pelo rosto e, salgada, temperou a degustação daquela amarga tristeza. Disse-lhe o quanto amo, falei tanto quanto pude, tudo o que sentia. E, nem pude notar o que havia acontecido. Aquele rosto, um pouco inchado, que chorava suas mazelas, que mostrava suas fraquezas, tomava forma outra vez. Afastou-se do meu ombro, vagarosamente, olhou-me sorridente no fundo dos olhos e soou palavras que diziam: “De que me valeria o mundo se não tivesse teu amor? Amo-te mais que à vida”. Beijou-me e é feliz ao meu lado.

Ideal Irreal

Manhã, o casal acorda com o rádio relógio. A mulher se demora na cama enquanto o homem (não aparece a cozinha) faz o café da manhã e serve na cama (hábito que aparenta ser diário). A mulher mostra um sorriso feliz e se alimenta com o marido. Levantam-se, vestem-se com vaidade. A mulher prende seus cabelos com um daqueles pauzinhos. E vão ao carro.

No carro, a câmera enquadra o rosto do homem (o motorista) e, enquanto abre o quadro abaixa e se fixa no corpo deste (entre o queixo e os joelhos).

- gostou do café, querida?

- sim, amor, como sempre. Estava perfeito. Te amo.

- e sempre estará. O maridão aqui faz tudo pra te agradar.

- eu sei querido, não é a toa que casei com o homem perfeito.

(sorrisos e carinhos)

- meu bem, segura aqui pra mim que não to gostando do meu cabelo assim hoje. Vou prender com o pitó.

- tudo bem, à noite você lembra de pegar no painel tá?

Chegam no trabalho da mulher.

- até mais tarde meu pitelzinho!

- até meu pão!

O homem vai até o seu trabalho. Desce do carro. A porta fecha.

Bem arrumado o homem vai até seu ambiente de trabalho. Chegando em sua mesa, levanta a vista. Aparece o relógio indicando 9:01. Pontualmente inicia seus trabalhos. O seu ramal toca. Vai até a sala da chefe com seu ar bem humorado e feliz. Recebe uma reclamação. A expressão de seu rosto tem os primeiros traços de raiva. Sente-se humilhado por não poder reagir. Volta para sua mesa. A bronca o leva a pensar em sua esposa num dia comum, em que a viu ser auxiliada por um rapaz quando passava em frente à padaria.


Lembra-se...

A mulher sai da padaria com várias compras e é ajudada por um rapaz. Desconhecido. Que leva as compras até o carro deles e vai embora.

De volta ao escritório...
O homem já sem o ânimo de mais cedo baixa a vista. Levanta a vista. O relógio marca 17:30. hora de largar. Volta ao carro.

Agora, no seu carro, podendo se exaltar, começa a ironizar e falar só enquanto se estressa com o trânsito (discretamente). Já vê-se que seu modo de passar as marchas e acelerar o carro não é o mesmo. O homem parece mais natural e interpreta a forma que tem que se comportar no trabalho com ironias.

- tudo bem chefe, admito que errei. Devo fazer o trabalho que me rendeu três dias de atenção novamente porque não ficou à sua altura. Acredito que também deva pedir desculpas por fazê-la perder tempo lendo tantas baboseiras (que, por ventura, são meu trabalho de TRÊS DIAS!)

Agora ele passa a agir mais naturalmente.

- essa rapariga! (Regionalismo) acha que é por estar num cargo acima do meu que toda opinião dela é mais válida que a minha. “A chefe é PHD” eles dizem. PHD porra nenhuma! Aquilo é uma vaca que se acha!

Chega ao trabalho de sua mulher.

A mulher saída porta do prédio onde trabalha e caminha até a calçada. O carro aparece nas fotos pela primeira vez. O carro pára, ela abre a porta do carro. Assim que abre, o som captado de dentro do carro volta enquanto ela se abaixa para entrar no carro.

A mulher não diz boa noite. Começa a falar do dia ruim e comentar sobre a vida alheia.

- você acredita que o menino do suporte a informática ta tendo um caso com a minha chefe. Vê se pode. Um menino que deve ter seus 23 com uma velha de 45. só pode ser por interesse mesmo. E a mulher ainda se exibe! Isso é por que é chefe! Senão, estaria preocupada com a tal “ética em ambiente de trabalho.

O som vai ficando mais distante, as palavras não são mais compreensíveis. Enquanto aquele ruído estranho circula no carro, as lembranças do seu trabalho e da padaria vêm à tona. O homem, estica o braço e pega o pauzinho que a mulher deixou no carro pela manhã. O carro pára. Suas mãos pressionam o objeto pontiagudo. A mulher pergunta.

- o que foi?

Escurece tudo e escuta-se um grito abafado. Volta ao corpo do homem que segurava o pauzinho. O pauzinho agora está envolto em sangue. O quadro abre e vemos o rosto do homem. Ofegante. Acabou de extravasar sua raiva. Escurece novamente. Volta ao rosto do homem. Vai ficando assustado. Percebe que acabou de matar alguém, matou sua mulher. Escurece outra vez. Quando o rosto volta a aparecer um sorriso de prazer se expõe em seu rosto apoiado em sua mão suja de sangue ainda com o objeto que matou sua mulher. Não sente culpa.

FIM