quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Moça que sonha



Já não lhe importa mais, teve o que queria. Deitada, respira brandamente num ir e vir de ar comovente, como quem teve um dia farto, deitou exausta e agora já descansou. Não sente mais as dores, não pensa nos problemas, apenas se deleita com os sonhos que serão esquecidos quando seus olhos voltarem a abrir. Encontra-se de banda, suas curvas se acentuam visto que, além da posição colaborar, seu corpo é deslumbrante. Não há sombras no escuro, ela suspira quando se move, é um esforço incomum girar na cama. Em sua orelha esquerda, um brinco que jamais sai dali tenta aparecer em meio à perfeição daquelas curvas, as de seu rosto. Sua boca não tem sede ou fome, mas aguça uma vontade como se pedisse naturalmente, sem movimentos. Carne macia, próxima àquela respiração quase que imperceptível agora, senão pelos movimentos de seus pulmões. Mais acima, os olhos que meditam, quietos, calmos, hora estáticos, outrora frenéticos, já se encontram em seu próprio mundo, em seus pensamentos íntimos e tão secretos que nem a ela, quando em consciência, se revelam. Não se movem os cachos, mas seu corpo respira inteiro. Aquecido, liso, disposto da maneira que se postou mais cedo. A cada inspiração seus seios se fartam coagidos pelo espaço que o pulmão ocupa até que voltam aos seus lugares quando o ar se vai. Seus braços movimentam-se após muito tempo, suas pernas dispostas uma acima da outra, agora relaxam e se esticam a esmo, inspira novamente como quem tem uma breve pausa no sonho, percebe uma ausência, estranha. Movimenta o braço direito até me encontrar e me puxa como faria com seu lençol. Sente-se aquecida e torna a dormir. Já não lhe importa mais o mundo, teve o que queria de mim.

Augusto Simões

sábado, 25 de outubro de 2008

Coito

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Veste a roupa que lhe dei e passeia pelo quarto. De certo, aprecia a vestimenta, trouxe algo sem folgas, pelo contrário, um ou dois números a menos, pressiona seu corpo, noto melhor suas curvas, mas não se incomoda, posto que já lhe é de hábito viver sob pressão, como se não bastasse as de praxe, as que lhe são postas goela abaixo, ainda se sufoca mais em vaidade. Não me acanho nos elogios, e mostro-lhe o quanto a admiro. Pesam-lhe as jóias nas orelhas. O colar, bem rente ao pescoço, atrapalha alguns movimentos enquanto reflete cada luz que se aproxima. Está radiante em seu vestido justo, novo, lhe apertando os quadris, mal lhe permite alguns movimentos. Ainda se enaltece em seus saltos, altos, com bicos finos, finos saltos altos onde ela flutua e desgasta suas pernas e sua postura. Admira a própria maquiagem, cobrindo seu rosto de branco, escurecendo os cílios, clareando a pele, escondendo as expressões, disfarçando o cansaço, pinta os lábios, colore seus tons, rosas, azuis, brancos, todos harmonicamente suaves. Eis que quando penso que acaba, torna à penteadeira e começa seu escultural penteado, dentre pentes e escovas, presilhas, adornos e tinturas se satisfaz. Então se enche de creme, se perfuma e me pergunta: “Onde vamos?” Calo, a conduzo até o restaurante, peço um prato breve e levo-a de volta ao nosso lar. Pergunta-me então: “Por que tão breve?” Respondo, enfim: “Pois estás vestida para o mundo, bela para os outros olhos, cheirosa para os outros perfumes. Agora quero-te especial para mim.” Curiosa, me pergunta: “Como?” Abro meu maior sorriso, a finto sem pudor e lhe falo em bom tom: “Despe-te e transpira.”
Augusto Simões

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Trecho do meu curta (Narrado)

Não, não sou um monstro, sou comum, assim como aqueles que me julgam. Não, repito, não sou um monstro. Neste mundo nos levam a crer que somos o que não somos, deslocam nossos pensamentos chamando-os de instinto e nos adestram, aos poucos, para controlar nossa natureza. Somos animais, sim, racionais, entretanto, os mesmo animais que habitavam estas terras desde os primórdios. Lapidando-nos, nos forçam a esquecer que nossa essência é simples, destruímos e passamos por cima de tudo o que nos é inconveniente para alcançar nosso conforto psicológico, físico, instintivo.

Não mesmo, não sou um monstro. Sou, assim como você, um animal racional, cercado de regras escritas por homens que não tinham a mínima noção de como o mundo seria nos dias atuais. E por que não escrever minhas próprias regras? Por que não seguir meus instintos? Por que não matar alguém? Quem sabe que isto lhe faria bem? O que há de tão importante numa vida humana? O medo das regras mesmo quando não se sabe de onde vieram torna atos que seriam naturais em atitudes bárbaras, arcaicas, mas ainda somos os mesmos homens, ainda não encontraram o ser humano ideal, ainda somos animais instintivos, doentes, sim, infectados por uma tal humanidade que não reconheço como um bem, eu a vejo como uma prisão.

Não, não sou um monstro, sou livre, agora sou livre.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Consolo

Vejo o rosto todo arquear, sucumbir, deformar-se aos poucos. Vagarosamente. É o orgulho, a vergonha, a covardia que o mantém firme ou parcialmente firme. E então o rosto se movimenta com a expressão. O pescoço se move, usualmente na diagonal e sempre para baixo. Esconde a parte que sente e evita os soluços. Resiste por mais algum tempo.

Com o indicador fixado na ponta do queixo ergo a face que tem vergonha e observo que suas narinas parecem lutar contra a expressão que este rosto quer expor. Deixo-o, o rosto, seguir à vontade. Suas sobrancelhas encolhem e, assim, enrugam toda a sua testa. Seus olhos parecem esmagados pelas pálpebras que se contraem. Se avermelham aos poucos. Agora já parecem mortos ali dentro, afogados em toda aquela água, deliberadamente infelizes. Vejo então a face feia, a face verdadeira. Vejo então o que a tristeza pode fazer com a face.

Então abraço-lhe, dou-lhe todo o consolo possível, digo-lhe tudo o que sinto, faço o possível para dar-lhe consolo. Até ver que as lágrimas secaram ao sopro de minhas palavras, a água que afogava os olhos limpou o vermelho, vazou pelo rosto e, salgada, temperou a degustação daquela amarga tristeza. Disse-lhe o quanto amo, falei tanto quanto pude, tudo o que sentia. E, nem pude notar o que havia acontecido. Aquele rosto, um pouco inchado, que chorava suas mazelas, que mostrava suas fraquezas, tomava forma outra vez. Afastou-se do meu ombro, vagarosamente, olhou-me sorridente no fundo dos olhos e soou palavras que diziam: “De que me valeria o mundo se não tivesse teu amor? Amo-te mais que à vida”. Beijou-me e é feliz ao meu lado.

Ideal Irreal

Manhã, o casal acorda com o rádio relógio. A mulher se demora na cama enquanto o homem (não aparece a cozinha) faz o café da manhã e serve na cama (hábito que aparenta ser diário). A mulher mostra um sorriso feliz e se alimenta com o marido. Levantam-se, vestem-se com vaidade. A mulher prende seus cabelos com um daqueles pauzinhos. E vão ao carro.

No carro, a câmera enquadra o rosto do homem (o motorista) e, enquanto abre o quadro abaixa e se fixa no corpo deste (entre o queixo e os joelhos).

- gostou do café, querida?

- sim, amor, como sempre. Estava perfeito. Te amo.

- e sempre estará. O maridão aqui faz tudo pra te agradar.

- eu sei querido, não é a toa que casei com o homem perfeito.

(sorrisos e carinhos)

- meu bem, segura aqui pra mim que não to gostando do meu cabelo assim hoje. Vou prender com o pitó.

- tudo bem, à noite você lembra de pegar no painel tá?

Chegam no trabalho da mulher.

- até mais tarde meu pitelzinho!

- até meu pão!

O homem vai até o seu trabalho. Desce do carro. A porta fecha.

Bem arrumado o homem vai até seu ambiente de trabalho. Chegando em sua mesa, levanta a vista. Aparece o relógio indicando 9:01. Pontualmente inicia seus trabalhos. O seu ramal toca. Vai até a sala da chefe com seu ar bem humorado e feliz. Recebe uma reclamação. A expressão de seu rosto tem os primeiros traços de raiva. Sente-se humilhado por não poder reagir. Volta para sua mesa. A bronca o leva a pensar em sua esposa num dia comum, em que a viu ser auxiliada por um rapaz quando passava em frente à padaria.


Lembra-se...

A mulher sai da padaria com várias compras e é ajudada por um rapaz. Desconhecido. Que leva as compras até o carro deles e vai embora.

De volta ao escritório...
O homem já sem o ânimo de mais cedo baixa a vista. Levanta a vista. O relógio marca 17:30. hora de largar. Volta ao carro.

Agora, no seu carro, podendo se exaltar, começa a ironizar e falar só enquanto se estressa com o trânsito (discretamente). Já vê-se que seu modo de passar as marchas e acelerar o carro não é o mesmo. O homem parece mais natural e interpreta a forma que tem que se comportar no trabalho com ironias.

- tudo bem chefe, admito que errei. Devo fazer o trabalho que me rendeu três dias de atenção novamente porque não ficou à sua altura. Acredito que também deva pedir desculpas por fazê-la perder tempo lendo tantas baboseiras (que, por ventura, são meu trabalho de TRÊS DIAS!)

Agora ele passa a agir mais naturalmente.

- essa rapariga! (Regionalismo) acha que é por estar num cargo acima do meu que toda opinião dela é mais válida que a minha. “A chefe é PHD” eles dizem. PHD porra nenhuma! Aquilo é uma vaca que se acha!

Chega ao trabalho de sua mulher.

A mulher saída porta do prédio onde trabalha e caminha até a calçada. O carro aparece nas fotos pela primeira vez. O carro pára, ela abre a porta do carro. Assim que abre, o som captado de dentro do carro volta enquanto ela se abaixa para entrar no carro.

A mulher não diz boa noite. Começa a falar do dia ruim e comentar sobre a vida alheia.

- você acredita que o menino do suporte a informática ta tendo um caso com a minha chefe. Vê se pode. Um menino que deve ter seus 23 com uma velha de 45. só pode ser por interesse mesmo. E a mulher ainda se exibe! Isso é por que é chefe! Senão, estaria preocupada com a tal “ética em ambiente de trabalho.

O som vai ficando mais distante, as palavras não são mais compreensíveis. Enquanto aquele ruído estranho circula no carro, as lembranças do seu trabalho e da padaria vêm à tona. O homem, estica o braço e pega o pauzinho que a mulher deixou no carro pela manhã. O carro pára. Suas mãos pressionam o objeto pontiagudo. A mulher pergunta.

- o que foi?

Escurece tudo e escuta-se um grito abafado. Volta ao corpo do homem que segurava o pauzinho. O pauzinho agora está envolto em sangue. O quadro abre e vemos o rosto do homem. Ofegante. Acabou de extravasar sua raiva. Escurece novamente. Volta ao rosto do homem. Vai ficando assustado. Percebe que acabou de matar alguém, matou sua mulher. Escurece outra vez. Quando o rosto volta a aparecer um sorriso de prazer se expõe em seu rosto apoiado em sua mão suja de sangue ainda com o objeto que matou sua mulher. Não sente culpa.

FIM