terça-feira, 18 de novembro de 2008

Moça que acorda

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Naquela hora já se perdia numa corrida confusa onde, por mais que fugisse era alcançada, por mais que se escondesse era achada, e se afligiu. Subitamente, fechou fortemente os olhos, e desmaiou.

Quando abriu os olhos notou o sol tentando penetrar pela janela iluminando parte do cômodo. Não se via, estava há poucos segundos numa espécie de rua escura, sombria, sendo perseguida por um desconhecido que parecia conhecer todos os seus passos. Mas o dia clareara, e ela entendia, vagarosamente que estava num quarto. Seu corpo, não cansado, parecia bem aquecido e preguiçava enquanto sua retina lutava contra a luz que, mesmo pouca, lhe parecia ofuscante. Bocejou e ao esticar-se num gesto de preguiça notou-se nua. Pudera, algo de estranho havia acontecido, morria de frio em noites comuns e se encontrava despida ouvindo um ventilado a girar na maior força possível. Trazia-lhe vendo e, ainda assim, não tinha frio. Como poderia, era sensível às baixas temperaturas e jamais toleraria vento de tamanha força em sua direção sem seus tremores friorentos.

Assustada, sentiu-se bem. A dor de cabeça tomava-lhe a paciência enquanto se esvaíra a lembrança recente das ruas escuras de momentos atrás. Vinham-lhe lembranças desconexas até que ouviu passos. Sim, estava num quarto, despertara indisposta e assustava-se com os passos que ouvia. A maçaneta moveu-se e a porta abriu. Uma mistura de pânico e bem-estar invadiu-lhe a cabeça quando surgiu a bandeja carregada de alimentos leves. Sentia o cheiro do queijo frito e via o pão fresco. Olhou nos olhos daquele homem e disse:”Bom dia, meu amor, tive um sonho esquisito, acho que bebi demais ontem.”

Servida na cama, tomou seu café da manhã, deitou-se ao lado dele, em seu peito, e ouviu palavras doces pela próxima meia hora.

Augusto Simões

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

À Poética



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Sentia-se mais leve à medida que se aliviava dos apertos. Pudera, passara horas presa naquelas medidas, apertadas, bem acabadas. Mas o calor não lhe abandonava, estava tonta da taça que secou algumas vezes e o álcool não a deixara refrescar. Não, não quis o banho quando chegou, sentiu-se ao mesmo tempo preguiçosa e disposta, diante de seus pensamentos, sem os limites de costume, sem qualquer restrição, a embriaguez livrara-a. Entorpecida, dançava e cantava suas músicas e seus desejos, parodiava as melodias com intenções e mordia os lábios murmurando, ascendente e suave em sua cadência, seus passos, seus suspiros.

Sorria, sim, sem motivo aparente, sorria do que lhe vinha à mente, dos pensamentos, e pulava levemente contornando os móveis do cômodo, passeava ao redor de tudo, queria dividir sua alegria vinda de lugar algum com tudo. Deixava todos tontos e sorria como uma criança que ri das próprias fantasias e não aparenta loucura, só pureza.

Também degustava, alisava os quadros, as dobras, as peles, almejava sentir os detalhes de cada espessura que não sentia, usava e abusava de seu tato. Com os dedos, as mãos, os braços, pés, pernas, barriga, costas, queria sentir tudo, tocar tudo. Não demorava para sentir frio. Ainda suava em seu calor, em seu torpor, e, toque a toque, conhecia mais suas sensações, suas emoções. Era toda ela. Vestia-se de si e cantava pedindo mais um trago daquela bebida, com sua maquiagem desfeita e seu semblante livre, leve, solta, vaidosa, sonhava com o momento que vivia. Jamais escolheria estar em outro lugar, viver outro momento, outra companhia. Envolta de suor e parte indispensável daquele cenário, era ela, assistindo tudo em primeira pessoa. Narraria tudo aquilo para seus sonhos e os faria mais belos assim.

Sentiu-se inteira enfim. Mudou de expressão, contou-me segredos, falou-me vontades, senti sua dor e não parou de confiar-me seus desejos, livre, sorria mesmo com expressão de dor e por alguns momentos, entre um discurso e outro, calava, dizia-me sentir demais para explicar, não transformaria em palavras o que exprimia em seu rosto. Estava ofegante e não queria descanso, não queria acabar aquele sonho real, e pedia ajuda, pedia fôlego, pedia.

Recuperou as forças, abandonou todo o senso, esqueceu do mundo, deixou seus pudores, largou mão das regras, apertou-me firme contra seu peito com toda sua força, e gritou, incondicionalmente, o amor que sentia por mim. Jurou-me depois, sua vida, sua alma, seu amor.

Postou-se farta em meus braços. Dormiu.

Augusto Simões

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Moça que sonha



Já não lhe importa mais, teve o que queria. Deitada, respira brandamente num ir e vir de ar comovente, como quem teve um dia farto, deitou exausta e agora já descansou. Não sente mais as dores, não pensa nos problemas, apenas se deleita com os sonhos que serão esquecidos quando seus olhos voltarem a abrir. Encontra-se de banda, suas curvas se acentuam visto que, além da posição colaborar, seu corpo é deslumbrante. Não há sombras no escuro, ela suspira quando se move, é um esforço incomum girar na cama. Em sua orelha esquerda, um brinco que jamais sai dali tenta aparecer em meio à perfeição daquelas curvas, as de seu rosto. Sua boca não tem sede ou fome, mas aguça uma vontade como se pedisse naturalmente, sem movimentos. Carne macia, próxima àquela respiração quase que imperceptível agora, senão pelos movimentos de seus pulmões. Mais acima, os olhos que meditam, quietos, calmos, hora estáticos, outrora frenéticos, já se encontram em seu próprio mundo, em seus pensamentos íntimos e tão secretos que nem a ela, quando em consciência, se revelam. Não se movem os cachos, mas seu corpo respira inteiro. Aquecido, liso, disposto da maneira que se postou mais cedo. A cada inspiração seus seios se fartam coagidos pelo espaço que o pulmão ocupa até que voltam aos seus lugares quando o ar se vai. Seus braços movimentam-se após muito tempo, suas pernas dispostas uma acima da outra, agora relaxam e se esticam a esmo, inspira novamente como quem tem uma breve pausa no sonho, percebe uma ausência, estranha. Movimenta o braço direito até me encontrar e me puxa como faria com seu lençol. Sente-se aquecida e torna a dormir. Já não lhe importa mais o mundo, teve o que queria de mim.

Augusto Simões

sábado, 25 de outubro de 2008

Coito

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Veste a roupa que lhe dei e passeia pelo quarto. De certo, aprecia a vestimenta, trouxe algo sem folgas, pelo contrário, um ou dois números a menos, pressiona seu corpo, noto melhor suas curvas, mas não se incomoda, posto que já lhe é de hábito viver sob pressão, como se não bastasse as de praxe, as que lhe são postas goela abaixo, ainda se sufoca mais em vaidade. Não me acanho nos elogios, e mostro-lhe o quanto a admiro. Pesam-lhe as jóias nas orelhas. O colar, bem rente ao pescoço, atrapalha alguns movimentos enquanto reflete cada luz que se aproxima. Está radiante em seu vestido justo, novo, lhe apertando os quadris, mal lhe permite alguns movimentos. Ainda se enaltece em seus saltos, altos, com bicos finos, finos saltos altos onde ela flutua e desgasta suas pernas e sua postura. Admira a própria maquiagem, cobrindo seu rosto de branco, escurecendo os cílios, clareando a pele, escondendo as expressões, disfarçando o cansaço, pinta os lábios, colore seus tons, rosas, azuis, brancos, todos harmonicamente suaves. Eis que quando penso que acaba, torna à penteadeira e começa seu escultural penteado, dentre pentes e escovas, presilhas, adornos e tinturas se satisfaz. Então se enche de creme, se perfuma e me pergunta: “Onde vamos?” Calo, a conduzo até o restaurante, peço um prato breve e levo-a de volta ao nosso lar. Pergunta-me então: “Por que tão breve?” Respondo, enfim: “Pois estás vestida para o mundo, bela para os outros olhos, cheirosa para os outros perfumes. Agora quero-te especial para mim.” Curiosa, me pergunta: “Como?” Abro meu maior sorriso, a finto sem pudor e lhe falo em bom tom: “Despe-te e transpira.”
Augusto Simões

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Trecho do meu curta (Narrado)

Não, não sou um monstro, sou comum, assim como aqueles que me julgam. Não, repito, não sou um monstro. Neste mundo nos levam a crer que somos o que não somos, deslocam nossos pensamentos chamando-os de instinto e nos adestram, aos poucos, para controlar nossa natureza. Somos animais, sim, racionais, entretanto, os mesmo animais que habitavam estas terras desde os primórdios. Lapidando-nos, nos forçam a esquecer que nossa essência é simples, destruímos e passamos por cima de tudo o que nos é inconveniente para alcançar nosso conforto psicológico, físico, instintivo.

Não mesmo, não sou um monstro. Sou, assim como você, um animal racional, cercado de regras escritas por homens que não tinham a mínima noção de como o mundo seria nos dias atuais. E por que não escrever minhas próprias regras? Por que não seguir meus instintos? Por que não matar alguém? Quem sabe que isto lhe faria bem? O que há de tão importante numa vida humana? O medo das regras mesmo quando não se sabe de onde vieram torna atos que seriam naturais em atitudes bárbaras, arcaicas, mas ainda somos os mesmos homens, ainda não encontraram o ser humano ideal, ainda somos animais instintivos, doentes, sim, infectados por uma tal humanidade que não reconheço como um bem, eu a vejo como uma prisão.

Não, não sou um monstro, sou livre, agora sou livre.